sexta-feira, 30 de maio de 2008

O Passeio de Daniel



O PASSEIO DE DANIEL

Estava eu a realizar um passeio turístico pela nossa querida Teresina e senti curiosidade de conhecer o pomposo e expansionista setor do ensino superior privado de nossa bela capital. Resolvi então visitar as duas mais renomadas faculdades privadas da nossa Cidade Verde, e com a certeza de que ninguém lerá ou se interessará por esse escrito, posso citar os nomes sem me preocupar que poderia estar a fazer propaganda gratuita. São elas Facid e Novafapi. Comecei pela primeira.
Logo de cara, senti um pouco de dificuldade para adentrar na faculdade. Os seguranças queriam barrar-me e percebi o real motivo da recusa em me deixar entrar: minha humilde indumentária não me dava a credencial para penetrar naquele fascinante mundo da educação.
Estava eu munido de um short dos camelôs discretamente colorido, de uma camiseta do Palmeiras que o menor conhecedor de futebol reconheceria sua não originalidade e de uma Havaianas Branca que um dos estudantes de branco da Facid apontou-a, condenou-a e entregou-me aos seguranças proferindo as seguintes palavras:
_ Não deixe esse vagabundo entrar! Olha só a Havaiana dele! Que Havaiana que nada! Aquilo é uma Mikalce! Até a bandeirinha do Brasil colada em suas peças está se soltando! Não deixe ele entrar!
Socorri-me então com meu amigo Maílson, estudante de fisioterapia da Facid, que prontamente me emprestou seu Naique choque e seu jaleco.
Consegui finalmente adentrar na faculdade. Tive muito boa impressão. Tudo muito limpinho, organizado, inclusive os alunos, todos bonitinhos e engomadinhos, uma pintura! Por um instante, senti um pouco de desgosto e me maldizi por ter freqüentado por tanto tempo a Uespi e a Ufpi. Não que todas as garotas das universidades públicas fossem feias, pelo contrário, é que as garotas das faculdades privadas por um motivo tal que ainda não decifrei são mais fofinhas, tão lindinhas! São realmente particulares! Elas não fazem greve de maquiagem nem das maravilhosas roupas que elas adquirem nos chópins. Essa é minha hipótese. O sábio Maílson tem uma hipótese bem mais provável: “Essas meninas não peidam”.
Mas foi outra coisa que despertou minha atenção e causou-me indignação. Perambulando pelos corredores da faculdade, pude observar um mundo de jalecos para lá e para cá como um varal móvel constituído somente de roupas brancas. E no meio daquele reino dos céus algumas cores destoavam de toda aquela brancura. Tratavam-se dos estudantes de direito e de talvez outros cursos os quais não consegui identificá-los por que inferi que os estudantes desses tais cursos aparentavam não sentir muito orgulho de estar cursando aquilo, pois que não trajavam camisetas identificadoras do curso.
E foi aí que percebi o quão esses acadêmicos eram menosprezados pelos estudantes de branco. E não só os ECNI (Estudantes Coloridos Não Identificados) como para minha surpresa maior também os de direito. Sim, os de direito! Que os estudantes de direito fossem rebaixados pelos de medicina ainda vá lá! Afinal são dois mil e quinhentos contos no “couro” dos pais dos futuros doutores. Mas um futuro advogado, promotor ou juiz não sei das quanta ser colocado abaixo de um reles estudante de enfermagem ou de fisioterapia é uma injúria! Até os acadêmicos de Biomedicina, cujo curso não passa de uma bioquímica disfarçada e que espertos marqueteiros das faculdades particulares permutaram o “química” com “medicina” tão-somente para dar um maior status e conquistar mais clientes, digo, estudantes, desfazem dos respeitáveis bacharelandos em direito. É uma vergonha para a pátria!
São os estudantes de direito os futuros guardiões da nossa honrada e igualitária Carta Magna, cuja profissão data do surgimento da propriedade privada, quando um valentão todo “bombado” e armado de um porrete numa das mãos, detonou-o sobre a cabeça de um magricela raquiticamente pleonástico, rachando-lhe o crânio e pronunciando as seguintes palavras:
“Essa terra agora é minha caralho!
Quem quiser tomá-la,
Vai ter que passar por cima da lei do meu porrete!”
Foi daí que surgiu toda a justiça e o direito. E é daí que os futuros juízes salvaguardadores da Lei do Cacete merecem todo o nosso respeito.
Foi então que me veio uma extraordinária idéia que mudará e porá fim a todo esse desagradável estado de coisas. Busquei nos filósofos o método e indaguei-me: O que dá todo esse status aos estudantes de branco? Então me veio uma óbvia resposta: Eureca! É claro que é sua vestimenta branca.
Surgiu-me então a idéia de caracterizar os estudantes de direito de uma forma peculiar para que todos os reconhecessem e lhes prestassem o devido respeito. E essa forma não era senão trajá-los com uma toga. Essa característica indumentária impõe respeito e por que não dizer até medo aos juízes, desembargadores e conselheiros e por que também não os imporia aos estudantes de direito?
Apenas que na minha visão de conceber essa vestimenta_ e para tranqüilizar aquela minoria dos bacharelandos que porventura viessem se recusar a utilizá-la_ ela não teria toda aquela gravidade das togas utilizadas pelos juízes e desembargadores quando se reúnem como que numa assembléia de urubus prontos a atacar a carniça para o julgamento de malfeitores como Buiú filho de Mulú que furtou uma galinha em meio a mil galináceos de uma das centenas de granjas de Seu José Vânio Cardoso. A minha toga seria mais leve e bem ao estilo da moda. Aliás, pensei encaminhar o projeto aos acadêmicos de moda das faculdades privadas, cujos coordenadores de curso poderiam inclusive montar uma turma de mestrado e dissertar sobre esse relevante tema.
E assim haveria de se por fim a tamanha injustiça nas faculdades privadas teresinenses e se não numa das maiores injustiças do Brasil: A subjugação dos acadêmicos de direito pelos estudantes de branco.
Quando ainda percorria os corredores da FACID a matutar sobre como ajudar os gloriosos graduandos em direito, aquele estudante de branco que me entregara aos seguranças quando eu ainda tentava introduzir-me na faculdade reconheceu-me e começou a gritar:
_ É aquele delinqüente de novo! Olha só a etiqueta de sua camisa! É das feirinhas de Caruaru! Pega ele! Pega ele!
Vacilei!
Absorvido nos pensamentos de tão nobre causa, deixei que a etiqueta da minha “pirata” camiseta do Palmeiras se pusesse para fora do jaleco que me fora emprestado por Maílson e quando me dei conta lá se vinha uma multidão de patricinhas e pleibóizinhos enfurecidos com o reles traje no meu encalço, e que inclusive na correria, pude identificar estudantes de direito que eu tanto estimava e queria ajudar atrás de mim por me pegar.
Foi aí que me recordei que quando se está na roça fugindo de boi “brabo” salta-se até cerca de arame farpado sem se dar conta e descobri que nem tudo que é capitalista é ruim. As molas do Naique choque de Maílson me deram uma impulsão tal que consegui transpor os umbrais da castelesca faculdade, levando apenas alguns choques na cerca elétrica. Mas enfim me livrei matrixianamente a dar língua aos meus perseguidores em câmera lenta quando transpunha o muro, ufa!

sexta-feira, 23 de maio de 2008

Programa Festi Fudi na Periferia



Trim...Trim...Trim...
Atendente do Bóbis: Boa tarde, como posso lhe satisfazer?
Paulinha: Boa tarde, solicito-lhe um Bóbis triplou-ékis-chis-chisburguer verdura.
Atendente do Bóbis: A senhorita reside no jóquei?
Paulinha: Monte Castelo;
Atendente do Bóbis: desculpe-me, entendi Marechal Castelo Branco?
Paulinha: Monte...
Atendente do Bóbis: Proximidades dos chópins Riversaide e Teresina?
Paulinha: ...Castelo.
Atendente do Bóbis: Ininga?
Paulinha: Ah, vai pra puta que pariu!

Esse interessante diálogo teve como fato gerador a necessidade de nossa amiga Paulinha de ao menos uma vez na semana esquivar-se da estafante rotina de se alimentar de arroz com feijão e carne. Nossa Heroína esqueceu-se de que residia num bairro classificado como de classe média a pobre, não sendo, portanto, área de cobertura de atendimento da nossa admirável rede de festi fudi Bóbis.
Esse acontecimento gerou-me uma idéia e não me abstive de compartilhá-la com o nosso querido presidente Lulinha Paz e Amor das elites. A idéia seria a implantação do programa “Festi Fudi na Periferia”. A justificativa do projeto encontra-se no i-meio por mim enviado ao presidente, a qual transcrevo literalmente: “ Senhor Presidente, antes de mais nada, presto-vos honrarias e genuflexões pela habilidade com que conduz esse governo na incansável defesa das elites desse país e pelo maravilhoso chute no traseiro dos pobres que vossa excelência a todo instante efetua nesses que são o atraso de nossa amável nação. Venho humildemente através deste propor-vos a implantação de um programa de governo por mim intitulado ‘Festi Fudi na Periferia’. Tal programa será de grande valia para o vosso governo, visto que gradativamente servirá de substituto ao tão injustamente difamado e criticado ‘Programa Bolsa Família’. Vossa Excelência não mais terá que escutar e se impacientar com declarações mentirosas do tipo: ‘ O Bolsa Família dá o peixe, não ensina a pescar.’ Encontrei a solução para os vossos problemas. Eis a explanação. O Programa ‘Festi Fudi na Periferia’ consiste em conceder isenção fiscal às inúmeras redes de Festi Fudi multinacionais e nacionais do país_ que em suma não passam de duas, Mequedônaldes e Bóbis_ que aceitarem levar suas lojas e produtos para as periferias das nossas grandes cidades. Tal medida levará à geração de grande quantidade de empregos diretos e indiretos contribuindo para a redução da pobreza nesses bolsões de miséria. Entretanto, Vossa Excelência, tão maquiavélico quanto eu, deve estar se indagando_ que clientela terão essas redes de Festi Fudi, caro companheiro, em meio à tanta pobreza? Que interesse terão essas multinacionais de não pagar impostos para instalarem-se em regiões nas quais não terão um cliente sequer, se já gozam desse benefício instalados em meio à sua clientela rica e de costume? Explico-vos. Em primeiro lugar, há a geração de emprego formal com mão-de-obra barata desses grotões do país. Em Teresina, Por exemplo, cidade na qual com muito orgulho resido, pode-se pagar a diária de trabalhadores de favelas como a Vila Irmã Dulce com sobras de pão com ovo do espetacular meque-dupléks-chis-chistudo salada do mequedônaldes deixadas pelos bem nascidos que para ali se deslocarem. É lucro certo! E não é tudo ilustríssimo Presidente. Como em toda grande cidade, os pobres de Teresina foram amontoados em bairros_ como Vila Irmã Dulce e Santa Maria da Codipi_ que se encontram a léguas e léguas de distância da zona nobre da cidade, com o fito de que a bela sociedade não embace sua visão com o lixo humano que ali se encontra. Os ricos que para ali se deslocarem terão que abastecer não menos de uma vez seus potentes e luxuosos carros que consomem muito combustível, contribuindo para aumentar a rede de cartelização dos postos de gasolina em Teresina. Esses são os empregos diretos e indiretos formais que serão gerados. Quanto ao subemprego, temos os pelintras, os ladrões, que não mais terão que se deslocar grandes distâncias até os longínquos bairros da alta sociedade e não mais se arriscarão pulando muralhas, desviando de cercas elétricas e correndo de Piti bul. Terão tudo que desejavam agora à porta de suas casas. E aí é onde reside uma vantagem para ambos os lados, tanto para a sociedade de bem quanto para a sociedade do mal. Os homens de bem, quais sejam, os ricos, levarão apenas a quantia em dinheiro necessária para adquirir um Bóbis triplou-éks-chis-chisburguer batata ou por um meque dupléks-chis-chistudo cenoura, cuja subtração desse valor não produzirá efeito algum no bolso desses bons senhores. Os homens do mal usurparão esse valor e essa quantia os possibilitará adquirir três quilogramas de carne, cinco quilos de arroz e dois de feijão, dando de comer para sua miserável família durante duas semanas, no mínimo. Dessa forma, será necessário apenas um rico a cada quinze dias para alimentar uma família pobre constituída de 11 maléficos indivíduos. O que vem a gerar ainda caro presidente, mais empregos formais com a contratação de policiais para bater em cabeça desses miseráveis coitados, digo, homens do mal, vilões inescrupulosos. O que, por conseguinte, tende a gerar a contratação de mais repórteres para os educativos programas policiais de nossa cidade com vistas a dar conta de tanta matéria policial. O que dará mais argumento ainda para a sociedade de bem reclamar junto a seus parlamentares a tão sonhada pena de morte. Aquele vetusto argumento com o fulcro de estabelecer tal pena na ordem jurídica brasileira, o de que Buiú, filho de Mulú furtou uma galinha em meio a mil galináceos de uma rede multinacional de granjas terá como substituto o argumento dum furto de meque triplou-éks-chis-chistudo beterraba, argumento este muito mais bonito e estrondoso! Há de não se esquecer também a expansão do maravilhoso pólo de saúde teresinense, sobretudo as áreas de gastroenterologia e oncologia, com o crescimento de casos de gastrite, úlcera e câncer de intestino entre os habitantes da periferia devido aos nutritivos âmburgueres produzidos pelos festi fudis. O nosso exuberante mercado de saúde há de agradecer!
É essa a justificativa do projeto senhor Presidente. Tenho certeza de que será um sucesso! Espero contar com vossa admirável sensibilidade para as causas nobres.


Atenciosamente

Daniel MMFe

Idealizador do programa

‘Festi Fudi na Periferia’”


domingo, 18 de maio de 2008

Ô povo novelêro!

Enfim, depois de dois anos e meio de inércia, retorno com um mísero artigo ou sei lá que denominação devo lhe dar. Tentei publicá-lo no jornal Meio Norte, no Diário do Povo, no O Dia, etc. e ainda a audácia de ir ter com O Globo, Folha e Estadão, mas como sempre fui impiedosamente enxotado. O Ministério da Censura classificou-o como inapropriado aos bons costumes da sociedade. Mas um dia, com a fé de um bom cristão que tenho, conseguirei subornar a redação de um desses jornais! Nesse ínterim, peço aos puros de coração que não o leiam. Acusaríam-me de corromper vossos nobres valores!
Que por.. é essa!? Com exceção do meu amigo Thompson e de talvez o empreiteiro, madeireiro, latifundiário, colaborador e articulador de Bush na Derrubada de Chavéz do poder, médico e astuto político comprador de votos através da prescrição de mebendazol ao povão e ainda comedor de indiazinhas ingênuas na fronteira de Roraima com a Venezuela, o nosso amigo Ryan (os únicos que leram algo que escrevi de forma não forçada), ninguém lê o que escrevo. E aqui está eu introduzindo esse escrito como se escritor fosse! Ah, mais vamos lá!


O povo adora novela. Agora não apenas nossa magnífica Rede Globo reina nesse campo. As demais emissoras exibem novelas tão ou mais graciosas que as do nosso onipotente canal de televisão. Tais novelas são bastante educativas, e mesmo meros analfabetos que dantes não sabiam calcular a soma de dois mais dois, ao final de uma dessas importantes transmissões televisivas adquirem conhecimentos de numerologia, babalorixarismo, charlatanismo, amorologia, sendo irrelevante o fato de que continuam sem saber o resultado da soma de um mais um. Problemas Nacionais dão lugar a debates fervorosos que inflamam as conversas dos brasileiros num dia posterior a um decisivo capítulo de novela, e ainda é possível notar um grandioso e numeroso ar de surpresa quando o mocinho bonzinho todo legalzinho, depois de tantos desencontros, maldades e inveja provocados e invocados pelos vilões, os quais sempre são maus e sempre lutam pra separar os pombinhos, termina por ficar com a donzelinha, e vivem felizes para sempre! Ainda há quem se surpreenda com esse constante desenrolar das peripécias novelísticas!
A mais nova novela da nossa amabilíssima Globo e de toda a nossa piedosa imprensa, que sempre se apóia nos queridos astros e estrelas globais com vistas a uma maior audiência, chama-se Caso Nardoni – Linchemo-os ou deixemos a pátria. Nossa pia população, alvoroçada pela imprensa, se solidariza com o caso e até Sibilino da Silva, pobre agricultor do sertão nordestino, em consonância com toda a sociedade de bem declarou que se lhe fosse dada a oportunidade, esbofetearia, estrangularia, morderia, rasgaria com os dentes e jogaria aos cães os pedaços dos corpos dos malfeitores, pois, segundo ele “poderia ter sido com minha filha”. Esquece-se nosso pobre campônio que a probabilidade de que o mesmo fato aconteça com um de sua prole é nula, visto que sua singela casa de taipa nunca se metamorfoseará num luxuoso edifício de tantos andares. Esquece-se ainda que essa mesma imprensa que o alvoroça nesse caso particular não lhe deu o conhecimento minimamente enfático dado a esse caso nem os devidos esclarecimentos da chacina em que há pouco tempo nossos nobres e castos policiais praticaram contra trinta almas miseráveis do subúrbio carioca. Esse fato, felizmente, nos é facilmente justificado pela nossa pia Globo, imprensa e sociedade pura, de bem, defensora dos valores éticos, morais e religiosos da família brasileira e da pátria: “Esse fato (matança, açoite de pobres) não gera novela e, por conseguinte, não gera audiência que, por conseguinte, não gera publicidade e em última análise não gera dinheiro, pecúnia, bufunfa, grana, capital que nos faz transbordar de gordura a pança. É um assunto por demais político e social, que poderia gerar detestáveis debates intelectuais entre Cientistas Sociais chatos e chatos defensores da justiça social. Nossa fútil sociedade não merece passar por tais constrangimentos. Ademais, foram pra debaixo da terra e Oxalá pro inferno (onde não mais seremos incomodados, já que nossa pura sociedade cristã tem o seu terreno garantido no céu), sendo eliminados tão-somente mais trinta potenciais criminosos”.
Daniel de Macedo Moura Fe



Perturbar é preciso

Surpreendem-se com a barbárie em que vivemos, oh meu não-Deus! Estão revoltados com a matança de policiais, ai, ai! Esses mesmos defensores do Estado de direito e democrático assassinam trinta inocentes, pobres, suburbanos, mas e daí? Tão-somente suprimiram mais trinta potenciais criminosos! Um alívio para nossa pia sociedade. A imprensa, míope, faz vista grossa. Chacina de sem-terras e crianças acontecem aos baldes! Alívio implícito para nossos corações e nossos pertences. Terei eu pena desses policiais?Aterrorizar-me-ei com a depredação de bancos e ônibus? Esses parasitas, esses sanguessugas (empresários e banqueiros) que se alimentam da miséria de um povo provocar-me-ão sentimento de solidariedade pelos mesmos e de repulsa pelos “bandidos”? Quem nessa história é o verdadeiro bandido? Ser-me-ão capazes de responder, moralistas defensores da ordem? Que imponham pena de morte e que seja eu o primeiro condenado, mas após eu, quem seria o próximo? Os parasitas capitalistas do sistema financeiro, o juiz Nicolalau, os políticos corruptos que usurpam milhões ou o pobre favelado que furtou uma galinha? Faltam policiais. Que nomeiem toda a população como oficiais de polícia! A carnificina elevar-se-ia em cem por cento. Culpar a deficiência educacional é no mínimo ingenuidade, coisa de iluminista ou positivista. A economia é quem financia a educação, não o contrário. As condições materiais de uma sociedade determinam seu maior ou menor grau de educação. Se apenas uma pequeníssima parcela da sociedade (os escolhidos) detém o poder dos meios de produção, claro está que a outra grandiosa parcela desfavorecida e destituída de tais meios revoltar-se-á, ao menos alguns membros. Afinal, graças a Alá, nem todos se conformam com suas condições de miserabilidade!

Daniel Macedo Moura Fe

Economistas, somo-lhes gratos!


“Os recursos são escassos e as necessidades ilimitadas”. Num país que tem mais boi do que gente, onde a quantidade de alimento produzida é imensamente superior ao número de habitantes, esse belo axioma da ciência econômica burguesa é mais do que verdadeiro. Concorda com ele Sibilino da silva, pobre agricultor que não sabe quanto é dois mais dois, mas que louva a demonstração de tal dogma por um venerável economista durante um programa televisivo: “Mediante complexos cálculos diferenciais integrais dos custos marginais, concluímos que o custo de oportunidade tende ao infinito quando...”.Essa brilhante e esclarecedora demonstração vem-nos alertar quanto à nossa incapacidade de interpretar o sistema (seja econômico, político, social, etc.). Nós, meros leigos e ignorantes devemos prostrarmo-nos diante desses doutos economistas, cabendo-nos tão-somente prestar-lhes genuflexões e honrarias.Uma questão levantada pelo virtuoso economista e que aflige Sibilino da Silva é a febre aftosa. O churrasco dos luxuosos restaurantes do sul do país estão caríssimos e o peso da pança dos bondosos burgueses reduziu-se em um grama. É uma lástima! Mas catástrofe maior se dá entre os banqueiros e grandes empresários exportadores, onde a redução do superávit na balança comercial obrigou-lhes a economizar um mililitro de champagne por mês! Sibilino revolta-se, e com ele nossa pia população.Mas o renomado e misericordioso economista confortou o espírito do humilde agricultor, observando que caviar, mansões e carros luxuosos são bens inferiores para os ricos e que, se naquele momento o estômago de Sibilino roncava era simplesmente porque o pobre campônio alimentou-se de bens superiores para a sua atual condição financeira, como caldo de feijão com palma.Sibilino sentiu-se lisonjeado pelo nobre economista ter-se lembrado da sua tão necessitada classe, um homem tão culto e tão atarefado, encontra tempo mesmo para velar pelos miseráveis e conforma-lhes a alma. Mas o que mais impressionou Sibilino foi a erudição do douto economista, com um palavreado elevado aliado a cálculos complexíssimos, “Mais que cobrinhas bonitas” exclamou.Quando incomodado pelo filho que chorava aos seus pés, pois há uma semana só se alimentava de um caldo que só tinha a cor do feijão, Sibilino confortou-lhe afirmando que o economista previu que a alimentação dos pobres elevar-se-ia para caldo de cobra, muito mais nutritiva e econômica, já que somente uma refeição diária supriria todas as necessidades vitais.
Daniel Macedo Moura Fé

E aí, revoltou-se com a corrupção?


Brasil, 24 de agosto de 2005.

Brasil, país belo, de belas paisagens, abundantes recursos naturais, carnavais, futebóis, corrupções, ops... Essa palavra não enquadraría-se bem numa tela pintada por Jorge Amado (Se não pintava em cores, pintava bem em palavras).
Encontra-se estarrecida a sociedade brasileira com as atuais denúncias de corrupção no governo Lula. Aliás, nossa admirável sociedade estarrece-se com praticamente tudo que de mais horrendo acontece em seu seio, desde a cadelinha bem alimentada e bem vestida da burguesa que perdeu-se em meio a essa barbárie humana e que no momento deve estar-se servindo de alimento ao favelado faminto(a foto da cadela encontra-se diariamente exposta na rede globo de televisão. Encontrando-a e devolvendo-a, será o responsável por tal façanha bem recompensado pela piedosa proprietária) até com o furto do crucifixo de ouro que até então jazia tranqüilo no também tranqüilo e requintado túmulo revestido com pedras preciosas situado num cemitério nobre de um bairro nobilitário de alguma cidade nobre brasileira.
Constituem-se tais brutalidades numa afronta à nossa bela sociedade, permanecendo abaixo na escala de vicissitudes apenas à corrupção de nossos políticos. Para o nosso bem, a crise trouxe consigo benefícios, como a politização e a conscientização de nossa população, a tal ponto de um índio totalmente caracterizado com penas, cokás, pintado de acordo com o padrão de sua tribo e com uma cabeleireira que batia a seus pés ser confundido com o “carequinha” Marcos Valério e queimado vivo por jovens caras-pintadas revoltados com a situação política deplorável por que passa nossa amável nação.Está claro que a nossa pia sociedade é não só vítima de todo esse processo de corrupção, como isenta pela manutenção do status quo.Ela apenas sofre periodicamente crises de amnésia, pois esquece-se ela que metade votou num candidato comprometido em ser submisso à piedosa política norte-americana, abarrotar as algibeiras dos empobrecidos e amáveis banqueiros, enfim, dar continuidade à política neoliberal à qual libera “novas” às nossas graciosas elites, e que a outra metade votou num candidato comprometido em ser submisso à piedosa política norte-americana, abarrotar as algibeiras dos empobrecidos e amáveis banqueiros, enfim, dar continuidade à política neoliberal à qual libera “novas” às nossas graciosas elites.
O pobre operário que herdou o trono do rei, aquele operário, incansável, inimitável, insuperável na defesa das elites visando sua manutenção no poder, ele no poder, as elites no céu, entalou no “troninho”, e agora clama às massas que o acolham, o acudam, assim pede, assim chora, assim manda e assim o fazem e a culpa da sua queda na merda é das elites, coitadas!
Daniel Macedo Moura Fé.

Reflexões de um louco suicida ou de um suicida louco ou como queiram denominar

Seguiu-se adiante com seus pensamentos, devaneios, reflexões de um homem infinitamente frustrado na vida._ Ei, ei seu narrador, interrompeu-me o personagem de quem vos falo._Reflexão_ continuou_ é a consciência pensando em si mesma, ou o pensamento pensando em si; para se ter consciência, torna-se imprescindível um cérebro e conseqüentemente um corpo biologicamente humano; pelo que me cabe, sendo a consciência um ente abstrato, teria ela tais premissas, isto é, um cérebro e um corpo humano para pensar em si?_ Isso não vem ao caso, retruquei._Espera_ interrompeu-me novamente nosso ilustre personagem_não terminei.Como poderias tu, narrador, afirmar que minha vida foi infinitamente frustrada se o infinito (que não me desminta a matemática) não é conhecido e, portanto, não poderias tu usar tal definição para mensurá-la!?_ Tenha calma, meu bom rapaz, deixe-me terminar a história, até por que tudo que falaste não tem nexo._ Desculpe-me! Exclamou Amadeu, esse é seu nome, Amadeu.Como vês leitor, nosso personagem tem um certo apreço pela reflexão.Como mencionei, Amadeu teve uma vida frustrada em todos os aspectos (vida amorosa, intelectual, moral, etc.) e para escapar a esse fado trágico a que o destino lhe reservara, se é que ele crê em destino, acovardou-se diante de tal situação e concluiu que só havia três meios para fugir daquele “beco sem saída”. Enumero-os:1. Retornar à infância;2. Suicidar-se;3. Enlouquecer, literalmente.Com relação à primeira solução, acreditava nosso amigo que voltando a ser criança esqueceria todos os problemas e frustrações. Descartou-o logo, pois até à elaboração da teoria da relatividade de Einstein e mesmo após esta ainda não descobriram um meio pelo qual voltar ao passado, a não ser, talvez, em teoria. O futuro seria fácil. Bastava uma nave ou algo parecido que atingisse a velocidade da luz, um buraco negro especial e, nada mais!Infelizmente, presume-se que um indivíduo aberto à possibilidade de perder a vida voluntariamente não queira ter futuro, muito menos ir ao futuro.Certo de que não fora bem sucedido na fase anal de Freud, a primeira alternativa foi completamente descartada. Restava-lhe o suicídio ou a loucura. Procurou, portanto, Amadeu, como um autêntico covarde, a alternativa relativamente mais fácil_ e não pense o leitor mais desavisado e não conhecedor do pensamento de Amadeu, o qual não descrevi, que seja a loucura. Realmente não o era. Amadeu passou a fazer uma análise discutivelmente minuciosa do suicídio.Refletia ele: “Mesmo sendo ateu, não poderia eu garantir a não existência de Deus. Logo, não poderia suicidar-me sem antes analisar o caminho dos que se autodestroem segundo a concepção religiosa.” “Seguindo a linha religiosa, teria eu, pois, dois caminhos: o de Lutero, no qual não iria eu para o inferno. Mas em não indo para o inferno, presume-se que então iria pro seu oposto, o Céu, e, se o Céu for como descrevem os escritos bíblicos e a maioria dos religiosos, ou seja, se lá me estiver reservada uma vida eterna e feliz, quem garantiria que lá eu não tivesse uma eternidade de frustrações? Além do que uma vida só de alegria não teria “graça” . Não me recordo no momento se foi o próprio Jesus quem proferiu tais palavras ou se é apenas um dizer popular. De qualquer forma, constitui-se numa tese que se não deve descartar.”“O outro caminho seria o dos escritos antigos da Bíblia e segundo o pensamento também da grande maioria dos religiosos, nos quais quem retira voluntariamente o dom de Deus, isto é, o Dom da vida, terá destino certo, qual seja, o inferno, e, como todos devem ter ouvido falar, apesar de que nunca ninguém comprovadamente tenha subido das profundezas para contar como é lá, não valeria a pena suicidar-me, pois, no inferno, ao menos teoricamente, sofreria eu eternamente.”“Afastando-me um pouco dessa ótica cristã-religiosa, teria eu outros dois caminhos: o da reencarnação e o do sumiço eterno. Reencarnar-me em outrem, numa outra vida, eu não queria, pois se já estou a retirar minha própria vida para não mais ter vida, porque quereria eu outra vida? Sendo assim, resta-me o sumiço eterno, mais condizente com a ótica atéia, mas, pensando bem, não queria eu ficar sabendo que não existo, ou melhor, não ficaria eu sabendo que não existo porque não existiria, pois, se não existo, como ficaria eu saber a que não existo? Incomoda-me muito esse caminho e não o quero.”Perceba o leitor quão fracos são os argumentos utilizados pelo nosso personagem (falta-lhe consistência no pensamento) sem uma fundamentação teórica sólida, argumentos estes rapidamente e duvidosamente pincelados sobre dizeres populares, bíblicos (tem mesmo até preguiça de consultar o livro sagrado dos cristãos para confirmar palavras), etc. Ele é até coerente, claro, com sua mediocridade e covardia.Depois de toda essa reflexão mediocremente filosófica acerca do suicídio, concluiu Amadeu que tal fuga da vida seria a menos propícia. Restava-lhe, então, a loucura. Vamos para mais uma chata e medíocre reflexão duvidosamente _enfatizo demais?_ filosófica. Ah, agüente mais um pouco querido leitor. Se preferir, jogue todo esse escrito idiota fora. Não o leia por minha mera insistência.“Até a esta altura da História da humanidade, nunca ouvi falar em ninguém que houvesse conseguido descobrir ou inventar um método para se ficar louco. Não obstante, um louco vive num mundo só dele, impenetrável, como uma placa de titânio, acreditando veementemente que o seu mundo é o correto e o dos ‘normais’ é que é errado. Acredito que o mesmo para os normais. Portanto, qualquer um pode ser louco e acreditar ser normal ou ser normal e acreditar ser louco, já que o normal pode ser louco sem ter disso consciência, e, loucos imaginam loucuras...”À par de tal reflexão, percebe nosso Amadeu que não pode concluir se é louco ou normal, se vive na realidade ou no mundo dos sonhos. Amadeu então, notando que o narrador mostra-se fiel na descrição do seu pensamento, e não se ofendendo com as zombarias efetuadas contra a sua pessoa por tal ente obscuro e escondido nas sombras da caneta, pede-lhe uma opinião sincera quanto ao seu atual estado mental. Eis a resposta:_ Tu ta é doido rapaiz, larga esse negócio de reflexão e vem pegar essa onda maneiríssima aqui na lua, hu, hu, huhahuha... Aê brother, hu...
Daniel Macedo Moura Fe

O destino

Mas em que enrascada meteu-se nosso Amadeu. Poderíeis vós imaginar que um medíocre, mas de certa forma inteligente homem seria flagrado num assalto a banco?Gozava nosso Amadeu de uma relativa boa condição financeira. Solteiro, funcionário público de segundo escalão, carro, casa... Mulheres? Para a sua atual condição, nem tanto! As mulheres que possuíra não faziam jus ao seu salário. Conquanto isso indagar-me-ia o leitor de onde vieram tantas e tamanhas frustrações. Garanto-lhe caro leitor que ainda não sei, meu caráter onisciente esbarra no confuso entroncamento de neurônios no cérebro disforme de Amadeu. Tais frustrações parecem-me ocultar-se em sinapses mal concluídas ou em algum lugar ainda não explorado pela nossa ciência.As respostas para o assalto, para esse ato de tamanha demência, encontram-se no depoimento prestado à autoridade competente, isto é, à polícia.Assim declarou Amadeu: “Senhor investigador, acreditas em destino?” Diante da resposta afirmativa, continuou: “Quando da última ceia de Jesus com os seus discípulos, Jesus declarara que havia um traidor entre eles e que este entregaría-o aos romanos, fariseus, saduceus, sei lá, a quem quer que seja, e que estes levaríam-no à morte. Analisando mais atentamente o fato, não tratara-se Judas de um traidor, mas, pelo contrário, de um benfeitor. Ora, as escrituras antigas já profetizavam sobre a vinda do messias, sua morte e ressurreição ao terceiro dia. Judas fora um mero peão que auxiliara o rei a dar xeque-mate no seu adversário. E o fez com tanta convicção_ mesmo tendo se enforcado depois_ que poderia ser reconhecido como um benfeitor e cumpridor da palavra de Deus.”“O que quero dizer-lhe com isso é que, se essas profecias puderem ser comparadas ao destino, não teria Judas nem nenhum ser humano culpa dos seus atos ou maus atos, pois já estava escrito que iria acontecer, e ninguém teria como modificar.”“Tudo isso claro, para quem crê em profecias e, no nosso caso específico, investigador, no destino.”“Desejava eu, pois, modificar o meu destino, escolhendo aleatoriamente esse ato que cometi. Mas aí me veio a seguinte questão: no meu destino já se poderia estar escrito que eu refletiria sobre o destino e que iria tentar modificá-lo através de um assalto a banco_ mesmo não condizendo com minha condição financeira, status, enfim, minha ‘boa vida’. Portanto, tudo isso já me estaria destinado, não tendo eu culpa do que fiz, assim como um assassino não teria culpa de ter matado ou um político de ter se tornado corrupto, pois já estava tudo escrito, segundo nossa crença, investigador.” Diante de argumentos tão pertinentes à sua crença, o investigador sentiu-se tentado a isentar Amadeu de qualquer crime e libertá-lo. Mas, refletindo melhor, a sociedade, embora muito supersticiosa, não o perdoaria e seria ele expulso do seu posto. Depois talvez não passasse Amadeu de um esperto anarquista, e suas palavras poderiam se tornar perigosas numa prisão repleta de anarquistas que não tem nada a perder. A sociedade transformar-se-ia num caos. Não, isso não pode acontecer. Amadeu então, representando tamanhos perigos, foi considerado doente mental e levado ao manicômio, onde suas palavras não produziriam efeitos.
Daniel Macedo Moura Fé

O quê? Uma idiota viagem ao inferno?

A loucura contamina o cérebro de nosso Amadeu. Numa de suas maiores crises, acredita ter-se suicidado, e, para sua infeliz surpresa, ratifica o credo religioso, encontrando-se agora mergulhado nas terríveis profundezas do inferno.Na travessia do lago dos mortos, Amadeu re-refletiu suas antigas reflexões e concluiu que cometera enorme erro em tornar-se ateu. Acreditando que no pós-morte sumiria eternamente, pelo contrário, sofreria agora pela eternidade.Tivera uma bela surpresa quando designado para o trabalho escravo numa das indústrias do demônio governador da província Norte das Trevas.Achando que seria vítima das piores atrocidades, torturas, chicoteadas... Encontrou um ambiente onde reinava a preguiça, a ociosidade, e no qual capatazes do demônio não conseguiam impor de forma alguma a sua autoridade muito menos restabelecer a ordem. Os operários finalmente conseguiram implantar a tão sonhada_ não por eles, mas por intelectuais_ ditadura do proletariado. Prescindindo do alimento para sua subsistência, as almas proletárias gastam seu tempo agora em consumo de bebidas caras, jogos, sexo com modelos, enfim, prazeres dantes nunca experimentados em vida. Os únicos que cooperavam eram alguns japoneses e todos os alienígenas. Sim, alienígenas, pois em seus planetas de origem a religião não fora instituída, e, com os seus infernos abarrotados, a solução foi e está sendo a transferência constante de almas extraterrestres para o inferno terrestre. Os alienígenas de há muito habitavam nossas profundezas.Tendo Adão e Eva vivido quase um milênio, até então o único a conviver com tais formas de vida fora Abel.A província Sul sofria constantemente ataques de anarquistas. A Leste, em sua maioria habitada por sábios filósofos que só pensavam e não trabalhavam, caia numa depressão econômica profunda, enquanto a província Oeste sofrera um golpe e fora tomada por políticos terrestres, que superaram o supremo das trevas em matéria de artimanha.Curioso, Amadeu foi ter com o senhor das profundezas, e indagá-lo quanto à situação caótica por que passa o reino da escuridão.O Diabo encontrava-se penosamente sentado ao chão. O seu último pertence, o trono, fora-lhe confiscado por ricos capitalistas do setor financeiro que o haviam emprestado quantias inimagináveis e impagáveis. O dinheiro seria para financiar a guerra contra os políticos que o haviam usurpado a província Oeste. Mas seus até então fiéis recrutas alienígenas corromperam-se, ficaram com o dinheiro para si e agora apóiam os políticos.Confessou-lhe Satã:_Desgraçado Amadeu, o meu reino, próspero até á chegada de Adão, Eva e seus descendentes, encontra-se em decadência. Meus longos chifres não mais são temidos e respeitados. Demônios inferiores traíram-me e até meus fiéis aliens foram corrompidos pelos humanos, que conseguem mesmo ser mais astutos que o rei da astúcia.Lúcifer, percebendo que Amadeu se comprazia com suas palavras, continuou:_Inepto Amadeu, ordeno-te que vá ao encontro do infeliz responsável pela criação da terrível raça humana e proponha-lhe a extinção da mesma, juntamente com suas almas.Amadeu, curioso para conhecer o céu, aceitou sem hesitar.Chegando-se ao portão guarnecido pelo ilustre São Pedro, previa não ser dificultada a sua entrada, visto a bondade do santo. Pediu-lhe carinhosamente e no entanto foi expulso impiedosamente. Entrementes não desistiu. Ficou a observar os que tinham acesso e descobriu porque fora impedido de penetrar na santa casa.Voltou ao inferno, subornou um alien que se engraçava com a mulher de um político e ofereceu a quantia cedida pelo bom alienígena pessoalmente ao santo. Fora rapidamente introduzido, tomando a frente mesmo de uma santa senhora de noventa e oito anos de idade que em vida rezava diariamente duzentos e noventa e um terços e cinco novenas dedicadas a São Pedro.A situação evidentemente causou-lhe estranhamento, mas Amadeu, sempre prevenido em vida, assim continuou em morte. Distribuía propina em todas as instâncias burocráticas constituídas por todo um arsenal de anjos, santos, profetas e almas humanas comuns. Esvaziadas as suas algibeiras, chegou-se finalmente ao Senhor.O Senhor recebeu-o, não obstante aparentasse certa impaciência. Expostas as causas porque viera Amadeu em nome do Anjo revoltado, Deus revelou-lhe:“Em verdade vos digo, meu filho, após a chegada dos humanos no paraíso, este lugar tornou-se um caos. Os anjos, santos e profetas corromperam-se, a ponto de permitirem a entrada de Hitler no Céu. Logo adiante podes vê-lo a brincar com coelhos e gatos, ou melhor, a estrangulá-los.São Francisco, com colares e braceletes de ouro, dispensou sua característica e humilde indumentária pela moda daslu e vive a esmagar formiguinhas inofensivas. Santo Agostinho abandonou suas atividades teológicas e filosóficas para assistir novelas mexicanas e da globo e não perde uma apresentação do É o than no programa do gugu. Tudo isso por influição humana. A situação é incontrolável, os humanos autodestruir-se-ão...”Nesse momento, desperta Amadeu em meio a uma sessão de choques elétricos no manicômio. Contou o que presenciara aos médicos e fora levado ao tratamento com sanguessugas.
Daniel Macedo Moura Fé

Engajamento

“Vivemos numa verdadeira matrix, num mundo de ilusões interpretadas por ilusões, de sonhos, que na realidade não passam de pesadelos. A diferença é que não são as máquinas a alienarem o homem, mas o próprio a alienar-se a si e a seus semelhantes”. Amadeu escutava exaltado e atentamente tais palavras e discuti-as intensamente com seu colega, que as pronunciava, sem, contudo, objetá-lo.Cansado de viver nesse mundo idealizado, aceito por todos como ele é, Amadeu decide partir pra prática revolucionária e abandonar suas antigas reflexões idealistas.Tomara conhecimento do marxismo através de um colega seu de sela, Zé da Silva (Amadeu ainda encontrava-se no manicômio) que acreditava ser o próprio Marx.Muito embora tenha percebido Amadeu que tal colega acreditava ser todo autor que lia (após prolongadas leituras de Malthus, Zé da Silva chegou a invadir um laboratório de pesquisas de vírus e bactérias altamente periculosos e de manusear e passar o ebola para toda uma população de favelados. Logo após essa tragédia, furtou um tanque do exército e destruiu completamente um assentamento de sem-terras, juntamente com os ocupantes. Não contente, obrigou moradoras de rua a ingerirem inúmeros comprimidos anticoncepcionais. Duas morreram com cento e cinqüenta e cinco comprimidos empanturrados em suas bocas. Constatada a doença mental, fora, Da Silva, levado ao hospício,onde encontra-se atualmente.) a alienação do trabalho, a concepção materialista da história e a práxis revolucionária ficaram bem fixadas em sua mente.Depois de sentir na pele a poderosa fluência de elétrons a que fora constantemente submetido e de perder setenta e cinco por cento do seu plasma, hemáceas e uma infinidade de componentes do sangue para algumas sanguessugas, os psiquiatras diagnosticaram se não a plena, mas uma temporária recuperação mental de Amadeu, decidindo, por isso, libertá-lo, para uma melhor avaliação.Livre, Amadeu pretendia pôr em prática aquilo que aprendera do colega. È de se estranhar esse futuro engajamento, já que Amadeu nunca fora ligado a questões sociais. Mas como iniciar tamanho empreendimento?Não podia cair no erro de alguns iluministas que colocavam a conscientização em si como fator de mudanças, senão materiais, mas pelo menos espirituais. Feuerbach era um materialista que no parecer de Amadeu só concebia mudanças no plano espiritual, não obstante seu estudo sobre tais teorias serem superficiais e as fontes duvidosas, pois, como acreditar em um louco?Para Marx, teoria e prática são indissolúveis.Mas, cria Amadeu que, necessariamente, tinha de começar pela conscientização.Passou a conclamar proletários, favelados, mendigos, sem-tetos, sem-terras, enfim, toda uma massa de excluídos para reuniões esclarecedoras e conscientizadoras visando à transformação da sociedade, à libertação do proletariado e à implantação do socialismo, assim as definia.Os encontros aconteceriam em sua própria residência. No primeiro, compareceram um mendigo, um cão e um gato.Amadeu pacientemente e de forma esclarecedora passou a explicar as engrenagens do sistema que moldavam os grilhões que torturavam não só o mendigo, como todo o proletariado.No termino da frase “... e o operário produz a riqueza que não usufrui”.O mendigo interrompeu-o e disse-lho:_ Meu bom senhor, usufruí daquilo que não produzi. Seu chá com bolinhos encheram-me e sua conversa também. Adeus e obrigado._ E o cão? E o gato? Não os levará?_ Não. O gato entrou por influição de um rato, e o cão, por sua vez, atrás do gato.Tratava-se o letrado mendigo de nada mais nada menos que o Quincas Borba. Não o conheces, leitor preguiçoso? Não esperes a chuva cair do céu, ou melhor, não esperes pela minha descrição, pois garanto-lhe, não a terá.Não concebia Amadeu como um mendigo desenvolvera uma filosofia que justificava sua mendicidade. É certo que Quincas Borba tivera uma infância luxuosa, freqüentara os melhores colégios e que após grandes dificuldades financeiras, tornara-se mendigo, situação esta superada com a herança de um tio seu, mas o humanitismo fora desenvolvido no seu período de miséria e um miserável justificando sua miséria é inconcebível! Revoltava-se Amadeu.Ardia-se em chamas Amadeu, mas nem por isso desanimou-se. Passou a utilizar-se de práticas um tanto inescrupulosas às quais iam de encontro à sua ética atual. Mas os fins justificariam os meios, pensava.As rádios divulgavam distribuição gratuita de bolinhos com chá a todos os proletários e excluídos que comparecessem a uma reunião na casa de um certo Amadeu.È escusado dizer que, dessa vez, a população compareceu em massa.Os esfomeados escutavam com muito custo e, impacientes, reivindicavam o lanche.Quão iludidos estavam. Não havia chá, muito menos bolinhos. Descoberta a farsa, pobre Amadeu, foi esbofeteado, espancado, atearam-lhe fogo e jogaram-lhe no calçamento, rachando-lhe o crânio.No hospital, todo ensangüentado e desfigurado, refletia:“Hegel, tua filosofia idealista visava apenas interpretar e justificar o mundo. Na tua concepção, a filosofia não era para ser aplicada, muito menos servir de instrumento de transformação. Pois bem, essa mesma filosofia é aplicada, mesmo por quem nunca ouviu falar em filosofia.”“Platão, meu caro Platão, querias o filósofo, tens o capitalista. Querias o escravo, tens o proletário”.“Meu pobre Marx, por que e pra que refutar essas filosofias?”Caia Amadeu numa profunda desilusão, quando, surpreendido por dois operários, sua esperança foi reavivada.Haviam, tais operários, chegado atrasados à reunião e não presenciaram o tumulto. Acharam que devia ser muito consciente um homem desses, a ponto de permitir tamanha destruição em sua própria residência e de se dar à tamanha sujeição física em prol do treinamento para a revolução.Não, não foi bem assim. Na realidade, os trabalhadores acreditavam que Amadeu tinha tão boa condição material e financeira, que promovera uma grandiosa festa visando uma candidatura futura, não temendo a ação furiosa de vizinhos oposicionistas com o barulho do som.Era período de eleições, mas Amadeu recomendara aos dois o voto nulo, visto que mesmo os candidatos dos partidos socialistas e comunistas não passavam de representantes subservientes aos burgueses.Os operários não entenderam bem e gesticularam com os dedos pronunciando monossílabos indecifráveis “anh, anh anh...”Amadeu, na sua ingenuidade, entendeu menos ainda e imaginou que fosse uma nova forma de cumprimento, repetindo o gesto. Os operários sentiram-se insultados e espancaram, enforcaram e humilharam Amadeu, que ficou aturdido.Os proletários compareceram às eleições munidos de camisetas e chaveirinhos do candidato do Partido da conservação da ordem e da moral nacional.Sua teoria fora confirmada, e Amadeu retornou espontaneamente ao manicômio.
Daniel Macedo Moura Fe

Com a Ética e a Moral não se brinca!

“Ser filho de Deus significa ser trabalhador. O trabalho dignifica a alma, liberta-a dos pecados terrenos. A preguiça é repudiada pelo Senhor, é a primeira dentre os piores dos sete pecados capitais...” Palavras bondosas, que afagam a alma, pronunciadas pelo santo padre Antônio de Almeida Vieira, bispo da diocese de Nossa Senhora das dores, do Livramento dos Males, da Libertação das Almas e da Santificação dos humildes.Essa extensa denominação deve-se ao fato de que, tendo a diocese se iniciado com o nome apenas de Nossa senhora das Dores, foi verificado posteriormente que, num distante condado situado nos confins da Lituânia, já havia uma diocese com a mesma denominação. O equívoco foi superado acrescentando-se o “do Livramento dos Males”. Infelizmente, a nova denominação já era utilizada por uma diocese no sul do País de Gales e, no intuito de evitar novos equívocos, o bondoso bispo resolveu atribuir à sua diocese toda essa extensão, que até o presente não foi contestada.Concluído o sermão, ouviu-se um grande e assustador ruído, vindo da direção de um mendigo que se alojava na porta principal da igreja. Chamava-se João da Silva.Irmão de Zé da silva, O louco, João da Silva vivia naquele santo local há dois anos, com a mulher e onze filhos, de todos os tamanhos e idades.O bispo apontou para João da Silva e proferiu aos religiosos horrorizados com o ruído, as seguintes palavras: “Vejam, meus filhos, é um homem dominado pela preguiça. Esse terrível pecado impede-lhe de alimentar seus próprios filhos e agora se encontra com o Anjo Mau encarnado em seu corpo”.Na realidade, o ruído foi provocado pelo estômago esfomeado de João da Silva. Seria de grande valia uma explicação científica acerca dos ruídos provenientes de estômagos esfomeados, para liquidar qualquer dúvida do leitor mais supersticioso. Mas minha mediocridade e minha preguiça impedem-me de buscar tal explicação. Não consigo libertar-me desse pecado, liberte-se você, leitor preguiçoso! Não obstante, os fiéis enxotaram-no, proclamando vade retro satanás!A catedral (podemos assim denominar aquela bela edificação) vale no mínimo uma medíocre descrição. Que bela! Que linda arquitetura!A fachada assemelhava-se à da catedral de Notre Dame, com uma única diferença, era toda banhada em ouro. O piso, de mármore; assim como os bancos que serviam de assento aos religiosos. Poltronas individuais, importadas das mais luxuosas casas especializadas de Paris, enobreciam fiéis ilustres. Dizem que uma das mais belas serviu de assento para as mais importantes reflexões estratégicas de guerra de Napoleão Bonaparte. Vidraças de diamantes, com as cenas da crucificação de Cristo e o altar, magnífico! Ornado com esmeraldas e as mais exóticas pedras preciosas só perdiam brilho para o crucifixo de quatro metros de altura, que erguia-se ao fundo, fundido e revestido pelo mais puro ouro do século XIX.A imagem de Nossa Senhora das Dores, do Livramento dos Males, da Libertação das Almas e da Santificação dos Humildes talvez fosse o patinho feio da história (foi encontrada num criatório de porcos do século XVII, em meio à lama), mas nem por isso deixava de engrandecer a esplêndida catedral.João da Silva podia ser considerado o empecilho da catedral que, juntamente com a imagem de Nossa Senhora... A bela arquitetura perdia um tanto em beleza.O humilde mendigo mais aparentava um monstro do que um humano, com uma barba e cabeleira crespas que encobriam seu rosto, sem falar nos trapos e no mau cheiro que exalavam as carcaças dos seus filhos. Sim, pois os que assim não podiam ser caracterizados era devido simplesmente à pança de lombriga que possuíam.E isso era péssimo para a santa igreja, porquanto afugentava os ilustres e nobres fiéis que mais contribuíam para a santa casa, sem mencionar nos prejuízos aos quais era constantemente submetida a humilde igreja com os salários dos zeladores, que tinham de limpar as mais variadas sujeiras oriundas dos humildes hóspedes e que, por isso, cobravam um adicional de salubridade pelo serviço.Certo dia, não mais suportando o choro desesperado dos filhos, João da Silva tomou uma atitude extrema. Furtou um litro de leite e cinco pãezinhos franceses do maior hipermercado da cidade. Flagrado pela segurança, foi conduzido à prisão.O acontecimento virou notícia de jornal e passou a ser veiculado nos maiores meios de comunicação do país.A população horrorizada, revoltada, clamava nas ruas pela pena máxima, qual seja, a morte.O pobre mendigo cometeu falta grave, pois vivia ele num país de valores éticos e morais, onde o descumprimento das leis (divinas ou humanas), nos seus mínimos detalhes, era fatal.Na sela, João da Silva foi espancado e violentado sexualmente e a população lá fora aplaudia o ato disciplinador e retificador da moral e dos seus costumes.Um pobre operário comentava que o vagabundo preguiçoso merecia muito mais e um rico capitalista lembrava que a sua classe era quem mais contribuía com os impostos que sustentavam pelintras como João da Silva.O pio bispo Antônio Vieira repreendia a atitude do mendigo, sem, contudo, incriminá-lo: “Cometera dois imperdoáveis erros nosso pobre irmão, o de apoderar-se da coisa alheia e o de desrespeitar a lei divina. Deus condena ao mais obscuro fim todos que seguem o mesmo caminho. Desrespeitara João da Silva não só a lei divina, nossos valores morais e éticos, como o mais ilustre contribuinte para o desenvolvimento de nossa amável nação e para o embelezamento de nossa humilde santa casa, que se enternece com o brilho da presença do nobre empresário Agamenon Serqueira Santos Terceiro...”. A mais pura sociedade enfurecia-se e pressionava por medidas enérgicas.Logo foi levado João da Silva a julgamento, presidido pelo meritíssimo ilustre juiz de direito Antonius Maximus Aristóteles Sófocles Temístocles Montesquieu Guimarães de Alcântara e Bourbon Oitavo da sexagésima sexta entrância vinculada à qüinquagésima sétima vara civil criminal da comarca de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, da Salvação dos Bons, do Livramento dos pobres e da Libertação dos excluídos, seccional octogésima quarta.O julgamento foi longo, cansativo. A promotoria citava os sessenta e cinco mil quatrocentos e trinta e cinco artigos do código processual penal que colocavam em xeque a ação ilícita de João da Silva.Quando se aproximavam os promotores do artigo quarenta e cinco mil seiscentos e vinte cinco, parágrafo qüinquagésimo quarto, inciso três mil setecentos e trinta e seis, alíneas de A a Z, a população, impaciente, invadiu o tribunal e resolveu fazer justiça com as próprias mãos.João da Silva foi espancado, esmagado, estrangulado e queimado. A fim de certificarem-se da sua morte, a população explodiu seus restos com nitroglicerina, e só não fizeram uso da bomba atômica, por não concessão da mesma pelas forças armadas.Na confusão, um outro mendigo vizinho de João da Silva de porta de catedral, visando obter a entrada principal, que era mais lucrativa, apontou para os onze filhos do agora volatilizado infrator da lei, e a população, com sede de justiça, mutilou-os todos, jogando os seus restos para os cães de rua.Essa foi talvez uma das razões que levaram Zé da Silva à loucura e a viúva de João da Silva encontra-se hoje bem alimentada, bem vestida, bem cuidada, no reduto dos homens nobres e defensores implacáveis da moral na sociedade, o prostíbulo.
Daniel de Macedo Moura Fé

Contemplemos, apenas!

CONTEMPLEMOS, APENAS!

Contemplar a vida, a aurora, o crepúsculo, as flores, o arco-íris, o mar, os peixes, a aranha, o ósculo, a natureza, o colorido. Os poetas já o fizeram e com muita presteza. Para muitos, quando os raios solares atravessam gotas d’água puras, emergem-se destas um colorido estonteante. Para muitos mais, os raios solares refratam-se em gotas d’água poluídas, ácidas, corrosivas, e destas emergem apenas o preto e branco. É esta não-cor que contemplo, e é esta não-cor que está impregnada em Maria da Silva e em milhões de Da silvas.“Um filho é uma dádiva de Deus”, diriam os religiosos, mas não o digam para Maria da silva.Depois de todos os horrores por que passou, a ex-mendiga vivia bem em sua nova morada. As pessoas parecem se conformar com um mínimo de melhoramento em suas vidas. A felicidade de Maria da Silva era como a de um cão de rua que encontrou um osso, mas um osso envolto numa fina película de carne, o qual, mesmo envenenado, proporcionou ao cão uma alegria anterior à sua morte.Dispunha a ex-pedinte de três refeições diárias, uma alcova com cama, colchão, espelho, pente e perfume, água para lavar a si e suas vestimentas, enfim, vivia feliz.Mas até que ponto uma gestação inesperada pode arruinar a vida de espíritos felizes? A pobre mulher foi expulsa da casa de prazeres, e via-se agora defronte ao seu velho ofício, o de indigente.Não podia consentir em retornar àquela amarga situação. Foi então que veio-lhe à mente a lembrança do pai, que deveria assumir a criança e ao menos dividir o ônus da criação.Para isso, deveria acionar a justiça, e esta encontrava-se reificada no nosso conhecido meritíssimo ilustre juiz de direito Antonius Maximus Aristóteles Sófocles Temístocles Mostesquieu Guimarães de Alcântara e Bourbon Oitavo.Em princípio, o juiz não a reconheceu e deu-lhe uma moeda no valor de um décimo de unidade monetária, pois se achava muito ocupado com a causa de um certo “Buiú” filho de “Mulú” que furtou uma galinha de uma granja contendo mais de vinte mil galináceos, à qual representava apenas um dentre os milhares de empreendimentos do nobre empresário Agamenon Serqueira Santos Terceiro. É prescindível dizer-lhes o veredicto, caro leitor.Maria da Silva, numa atitude desesperada, ameaçou-o, e o ilustre juiz empalideceu quando avistou a forma convexa da barriga que outrora era tomada de uma concavidade penosa.Antonius Maximus Oitavo era casado e quando o médico da família constatou, através de exames, sua esterilidade, a vida conjugal se entristeceu. O ilustre juiz não mais conseguiria nomenclaturar uma nova geração da sua nobre família com numerais ordinais.Ao contrário do que muitos podem imaginar, o meritíssimo juiz aceitou o filho sem ressalvas e mesmo sem o importante teste de DNA e, para não ser ingrato, indenizou a mãe.Noutro dia, os jornais da cidade exaltavam o nome de Antonius maximus e anunciavam que atitude mais solidária e digna de louvor como esta_ livrando uma pobre criaturinha das terríveis garras da pobreza_ nunca fora vista na história da humanidade.Naturalmente, a sociedade não teve conhecimento da bastardia do filho, muito menos a mãe adotiva.Passados dezesseis anos, Maria investiu a pecúnia recebida como indenização no comércio ambulante. Deu-se tão bem, que além da barraquinha fixa no centro da cidade, expandiu seus negócios para uma barraca móvel na avenida em frente ao chópin.Antonius Maximus... Nono recebeu uma bela educação no colégio Sagrado Coração de Nossa Senhora das Dores, do Livramento dos males, da Libertação das Almas e da Santificação dos Humildes, dirigido por freiras devotas da santa. Nas missas, realizadas na capela da escola, o pequeno nobre aprendia que deveria ser humilde, simples, ter amor ao próximo, não se apegar ao material, ser solidário, caridoso. Aliás, caridosas eram as mensalidades do santo colégio, que chegavam a cinqüenta mil unidades monetárias. Mas, caridade não tem preço. Um décimo do total era para custear a vida frugal das freiras e ajudar na manutenção para o permanente embelezamento da catedral de Nossa Senhora... O restante serviria para garantir o ensino de qualidade, o conforto, a segurança, o pagamento dos doutores e mestres que ensinavam com muito prazer os nobres filhos da sociedade.O passatempo favorito de Antonius Maximus Nono e seus colegas era passear, paquerar e consumir no chópin. Com efeito, essa era a prisão mais divertida e segura da época. Os marginais nunca os incomodariam naquele verdadeiro Forte do consumo. Outro divertimento e não menos importante era dar literalmente algumas marteladas em cabeça dos filhos de mendigos que cochilavam debaixo da sombra do pomposo e grandioso colégio e, vez em quando, rachar-lhes o crânio com uma barra de ferro.Num de seus passeios pelo chópin, enquanto se nutriam de um sândei meque-xis-xisburguer roti dogui, registramos um interessante e relevante diálogo entre Antonius Nono e seus colegas:_ É..._ Hum..._ É isso aí..._ Pode crer..._ Já viu meu naique?_ Ih, esse aí já ta fora de moda, olha só o meu novo ribuque niu rílex proteichon regenereichon pezeichon.Essa última fala era a do futuro juiz, que, de fato, além de um lindo ribuque, usava uma calça da naique, uma camisa da adidas, um boné da puma, um rolex e um colar de ouro com suas iniciais e o brasão de sua família. Todo esse aparato equivalente a duzentos e cinqüenta mil unidades monetárias, veio abaixo quando, surpreendido por sua namorada, Antonius teve o conhecimento que no outro dia já estariam lançando a moda verão-atémeioverão. Desesperado, o rapaz tomou a mão da namorada e levou-a em direção a uma loja. Mas esta Recusou o convite, justificando que o horóscopo do dia previa que o amor da sua vida poderia viver ou morrer, e que o dia podia ser ensolarado, chuvoso, nublado, havia a probabilidade de furacões, tufões, ciclones, terremotos, vulcões em erupção, não descartando mesmo a possibilidade de tsunami.Na saída do chópin, os jovens se depararam com um protesto de ambientalistas revoltados com os ambulantes, que, segundo eles, contribuíam para a destruição da reserva ambiental, retiravam a beleza da avenida e do chópin, atrapalhavam no ordenamento do tráfego de automóveis e, o mais grave, dificultavam as caminhadas matinais dos nobres que por ali circulavam.Muito embora dois terços da reserva tenha sido destruída para a implantação e durante a construção do chópin, os ambientalistas se exaltaram e com o auxílio da polícia, partiram pra cima dos ambulantes.Antonius Nono e seus colegas, mesmo desconhecendo os motivos da confusão, começaram a agredir os que mais se vestiam mal e fora da moda, coincidindo todos estes com os camelôs.A avenida ficou coberta de corpos e imersa em sangue dos vendedores ambulantes. Uma sobrevivente, muito debilitada e completamente desfigurada, clamava por socorro.Antonius Maximus fixou-a bem, amarrou-a e, com a ajuda dos colegas, jogou-a ao rio, que borbulhava de piranhas.Esse foi o fim de Maria da Silva, que sempre agradecia a Deus pela vida, que, aos dois anos de idade já queimava a mãozinha auxiliando a mãe na cozinha dos senhores, aos dez, tinha a mão mais grossa do que um tronco de jequitibá, proveniente da enxada que a calejava, aos quinze já era empregada doméstica, aos vinte indigente, aos vinte e cinco meretriz, e aos quarenta e um uma massa corporal reduzida a pó.E Antonius Maximus comemorava ao som de músicas inteligentes que ecoavam do potente sistema de áudio do seu carro: “Dói, um tapinha não dói...”, “Eu sou bédi bói...”.
Daniel Macedo Moura Fé