domingo, 18 de maio de 2008

Engajamento

“Vivemos numa verdadeira matrix, num mundo de ilusões interpretadas por ilusões, de sonhos, que na realidade não passam de pesadelos. A diferença é que não são as máquinas a alienarem o homem, mas o próprio a alienar-se a si e a seus semelhantes”. Amadeu escutava exaltado e atentamente tais palavras e discuti-as intensamente com seu colega, que as pronunciava, sem, contudo, objetá-lo.Cansado de viver nesse mundo idealizado, aceito por todos como ele é, Amadeu decide partir pra prática revolucionária e abandonar suas antigas reflexões idealistas.Tomara conhecimento do marxismo através de um colega seu de sela, Zé da Silva (Amadeu ainda encontrava-se no manicômio) que acreditava ser o próprio Marx.Muito embora tenha percebido Amadeu que tal colega acreditava ser todo autor que lia (após prolongadas leituras de Malthus, Zé da Silva chegou a invadir um laboratório de pesquisas de vírus e bactérias altamente periculosos e de manusear e passar o ebola para toda uma população de favelados. Logo após essa tragédia, furtou um tanque do exército e destruiu completamente um assentamento de sem-terras, juntamente com os ocupantes. Não contente, obrigou moradoras de rua a ingerirem inúmeros comprimidos anticoncepcionais. Duas morreram com cento e cinqüenta e cinco comprimidos empanturrados em suas bocas. Constatada a doença mental, fora, Da Silva, levado ao hospício,onde encontra-se atualmente.) a alienação do trabalho, a concepção materialista da história e a práxis revolucionária ficaram bem fixadas em sua mente.Depois de sentir na pele a poderosa fluência de elétrons a que fora constantemente submetido e de perder setenta e cinco por cento do seu plasma, hemáceas e uma infinidade de componentes do sangue para algumas sanguessugas, os psiquiatras diagnosticaram se não a plena, mas uma temporária recuperação mental de Amadeu, decidindo, por isso, libertá-lo, para uma melhor avaliação.Livre, Amadeu pretendia pôr em prática aquilo que aprendera do colega. È de se estranhar esse futuro engajamento, já que Amadeu nunca fora ligado a questões sociais. Mas como iniciar tamanho empreendimento?Não podia cair no erro de alguns iluministas que colocavam a conscientização em si como fator de mudanças, senão materiais, mas pelo menos espirituais. Feuerbach era um materialista que no parecer de Amadeu só concebia mudanças no plano espiritual, não obstante seu estudo sobre tais teorias serem superficiais e as fontes duvidosas, pois, como acreditar em um louco?Para Marx, teoria e prática são indissolúveis.Mas, cria Amadeu que, necessariamente, tinha de começar pela conscientização.Passou a conclamar proletários, favelados, mendigos, sem-tetos, sem-terras, enfim, toda uma massa de excluídos para reuniões esclarecedoras e conscientizadoras visando à transformação da sociedade, à libertação do proletariado e à implantação do socialismo, assim as definia.Os encontros aconteceriam em sua própria residência. No primeiro, compareceram um mendigo, um cão e um gato.Amadeu pacientemente e de forma esclarecedora passou a explicar as engrenagens do sistema que moldavam os grilhões que torturavam não só o mendigo, como todo o proletariado.No termino da frase “... e o operário produz a riqueza que não usufrui”.O mendigo interrompeu-o e disse-lho:_ Meu bom senhor, usufruí daquilo que não produzi. Seu chá com bolinhos encheram-me e sua conversa também. Adeus e obrigado._ E o cão? E o gato? Não os levará?_ Não. O gato entrou por influição de um rato, e o cão, por sua vez, atrás do gato.Tratava-se o letrado mendigo de nada mais nada menos que o Quincas Borba. Não o conheces, leitor preguiçoso? Não esperes a chuva cair do céu, ou melhor, não esperes pela minha descrição, pois garanto-lhe, não a terá.Não concebia Amadeu como um mendigo desenvolvera uma filosofia que justificava sua mendicidade. É certo que Quincas Borba tivera uma infância luxuosa, freqüentara os melhores colégios e que após grandes dificuldades financeiras, tornara-se mendigo, situação esta superada com a herança de um tio seu, mas o humanitismo fora desenvolvido no seu período de miséria e um miserável justificando sua miséria é inconcebível! Revoltava-se Amadeu.Ardia-se em chamas Amadeu, mas nem por isso desanimou-se. Passou a utilizar-se de práticas um tanto inescrupulosas às quais iam de encontro à sua ética atual. Mas os fins justificariam os meios, pensava.As rádios divulgavam distribuição gratuita de bolinhos com chá a todos os proletários e excluídos que comparecessem a uma reunião na casa de um certo Amadeu.È escusado dizer que, dessa vez, a população compareceu em massa.Os esfomeados escutavam com muito custo e, impacientes, reivindicavam o lanche.Quão iludidos estavam. Não havia chá, muito menos bolinhos. Descoberta a farsa, pobre Amadeu, foi esbofeteado, espancado, atearam-lhe fogo e jogaram-lhe no calçamento, rachando-lhe o crânio.No hospital, todo ensangüentado e desfigurado, refletia:“Hegel, tua filosofia idealista visava apenas interpretar e justificar o mundo. Na tua concepção, a filosofia não era para ser aplicada, muito menos servir de instrumento de transformação. Pois bem, essa mesma filosofia é aplicada, mesmo por quem nunca ouviu falar em filosofia.”“Platão, meu caro Platão, querias o filósofo, tens o capitalista. Querias o escravo, tens o proletário”.“Meu pobre Marx, por que e pra que refutar essas filosofias?”Caia Amadeu numa profunda desilusão, quando, surpreendido por dois operários, sua esperança foi reavivada.Haviam, tais operários, chegado atrasados à reunião e não presenciaram o tumulto. Acharam que devia ser muito consciente um homem desses, a ponto de permitir tamanha destruição em sua própria residência e de se dar à tamanha sujeição física em prol do treinamento para a revolução.Não, não foi bem assim. Na realidade, os trabalhadores acreditavam que Amadeu tinha tão boa condição material e financeira, que promovera uma grandiosa festa visando uma candidatura futura, não temendo a ação furiosa de vizinhos oposicionistas com o barulho do som.Era período de eleições, mas Amadeu recomendara aos dois o voto nulo, visto que mesmo os candidatos dos partidos socialistas e comunistas não passavam de representantes subservientes aos burgueses.Os operários não entenderam bem e gesticularam com os dedos pronunciando monossílabos indecifráveis “anh, anh anh...”Amadeu, na sua ingenuidade, entendeu menos ainda e imaginou que fosse uma nova forma de cumprimento, repetindo o gesto. Os operários sentiram-se insultados e espancaram, enforcaram e humilharam Amadeu, que ficou aturdido.Os proletários compareceram às eleições munidos de camisetas e chaveirinhos do candidato do Partido da conservação da ordem e da moral nacional.Sua teoria fora confirmada, e Amadeu retornou espontaneamente ao manicômio.
Daniel Macedo Moura Fe

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