“Ser filho de Deus significa ser trabalhador. O trabalho dignifica a alma, liberta-a dos pecados terrenos. A preguiça é repudiada pelo Senhor, é a primeira dentre os piores dos sete pecados capitais...” Palavras bondosas, que afagam a alma, pronunciadas pelo santo padre Antônio de Almeida Vieira, bispo da diocese de Nossa Senhora das dores, do Livramento dos Males, da Libertação das Almas e da Santificação dos humildes.Essa extensa denominação deve-se ao fato de que, tendo a diocese se iniciado com o nome apenas de Nossa senhora das Dores, foi verificado posteriormente que, num distante condado situado nos confins da Lituânia, já havia uma diocese com a mesma denominação. O equívoco foi superado acrescentando-se o “do Livramento dos Males”. Infelizmente, a nova denominação já era utilizada por uma diocese no sul do País de Gales e, no intuito de evitar novos equívocos, o bondoso bispo resolveu atribuir à sua diocese toda essa extensão, que até o presente não foi contestada.Concluído o sermão, ouviu-se um grande e assustador ruído, vindo da direção de um mendigo que se alojava na porta principal da igreja. Chamava-se João da Silva.Irmão de Zé da silva, O louco, João da Silva vivia naquele santo local há dois anos, com a mulher e onze filhos, de todos os tamanhos e idades.O bispo apontou para João da Silva e proferiu aos religiosos horrorizados com o ruído, as seguintes palavras: “Vejam, meus filhos, é um homem dominado pela preguiça. Esse terrível pecado impede-lhe de alimentar seus próprios filhos e agora se encontra com o Anjo Mau encarnado em seu corpo”.Na realidade, o ruído foi provocado pelo estômago esfomeado de João da Silva. Seria de grande valia uma explicação científica acerca dos ruídos provenientes de estômagos esfomeados, para liquidar qualquer dúvida do leitor mais supersticioso. Mas minha mediocridade e minha preguiça impedem-me de buscar tal explicação. Não consigo libertar-me desse pecado, liberte-se você, leitor preguiçoso! Não obstante, os fiéis enxotaram-no, proclamando vade retro satanás!A catedral (podemos assim denominar aquela bela edificação) vale no mínimo uma medíocre descrição. Que bela! Que linda arquitetura!A fachada assemelhava-se à da catedral de Notre Dame, com uma única diferença, era toda banhada em ouro. O piso, de mármore; assim como os bancos que serviam de assento aos religiosos. Poltronas individuais, importadas das mais luxuosas casas especializadas de Paris, enobreciam fiéis ilustres. Dizem que uma das mais belas serviu de assento para as mais importantes reflexões estratégicas de guerra de Napoleão Bonaparte. Vidraças de diamantes, com as cenas da crucificação de Cristo e o altar, magnífico! Ornado com esmeraldas e as mais exóticas pedras preciosas só perdiam brilho para o crucifixo de quatro metros de altura, que erguia-se ao fundo, fundido e revestido pelo mais puro ouro do século XIX.A imagem de Nossa Senhora das Dores, do Livramento dos Males, da Libertação das Almas e da Santificação dos Humildes talvez fosse o patinho feio da história (foi encontrada num criatório de porcos do século XVII, em meio à lama), mas nem por isso deixava de engrandecer a esplêndida catedral.João da Silva podia ser considerado o empecilho da catedral que, juntamente com a imagem de Nossa Senhora... A bela arquitetura perdia um tanto em beleza.O humilde mendigo mais aparentava um monstro do que um humano, com uma barba e cabeleira crespas que encobriam seu rosto, sem falar nos trapos e no mau cheiro que exalavam as carcaças dos seus filhos. Sim, pois os que assim não podiam ser caracterizados era devido simplesmente à pança de lombriga que possuíam.E isso era péssimo para a santa igreja, porquanto afugentava os ilustres e nobres fiéis que mais contribuíam para a santa casa, sem mencionar nos prejuízos aos quais era constantemente submetida a humilde igreja com os salários dos zeladores, que tinham de limpar as mais variadas sujeiras oriundas dos humildes hóspedes e que, por isso, cobravam um adicional de salubridade pelo serviço.Certo dia, não mais suportando o choro desesperado dos filhos, João da Silva tomou uma atitude extrema. Furtou um litro de leite e cinco pãezinhos franceses do maior hipermercado da cidade. Flagrado pela segurança, foi conduzido à prisão.O acontecimento virou notícia de jornal e passou a ser veiculado nos maiores meios de comunicação do país.A população horrorizada, revoltada, clamava nas ruas pela pena máxima, qual seja, a morte.O pobre mendigo cometeu falta grave, pois vivia ele num país de valores éticos e morais, onde o descumprimento das leis (divinas ou humanas), nos seus mínimos detalhes, era fatal.Na sela, João da Silva foi espancado e violentado sexualmente e a população lá fora aplaudia o ato disciplinador e retificador da moral e dos seus costumes.Um pobre operário comentava que o vagabundo preguiçoso merecia muito mais e um rico capitalista lembrava que a sua classe era quem mais contribuía com os impostos que sustentavam pelintras como João da Silva.O pio bispo Antônio Vieira repreendia a atitude do mendigo, sem, contudo, incriminá-lo: “Cometera dois imperdoáveis erros nosso pobre irmão, o de apoderar-se da coisa alheia e o de desrespeitar a lei divina. Deus condena ao mais obscuro fim todos que seguem o mesmo caminho. Desrespeitara João da Silva não só a lei divina, nossos valores morais e éticos, como o mais ilustre contribuinte para o desenvolvimento de nossa amável nação e para o embelezamento de nossa humilde santa casa, que se enternece com o brilho da presença do nobre empresário Agamenon Serqueira Santos Terceiro...”. A mais pura sociedade enfurecia-se e pressionava por medidas enérgicas.Logo foi levado João da Silva a julgamento, presidido pelo meritíssimo ilustre juiz de direito Antonius Maximus Aristóteles Sófocles Temístocles Montesquieu Guimarães de Alcântara e Bourbon Oitavo da sexagésima sexta entrância vinculada à qüinquagésima sétima vara civil criminal da comarca de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, da Salvação dos Bons, do Livramento dos pobres e da Libertação dos excluídos, seccional octogésima quarta.O julgamento foi longo, cansativo. A promotoria citava os sessenta e cinco mil quatrocentos e trinta e cinco artigos do código processual penal que colocavam em xeque a ação ilícita de João da Silva.Quando se aproximavam os promotores do artigo quarenta e cinco mil seiscentos e vinte cinco, parágrafo qüinquagésimo quarto, inciso três mil setecentos e trinta e seis, alíneas de A a Z, a população, impaciente, invadiu o tribunal e resolveu fazer justiça com as próprias mãos.João da Silva foi espancado, esmagado, estrangulado e queimado. A fim de certificarem-se da sua morte, a população explodiu seus restos com nitroglicerina, e só não fizeram uso da bomba atômica, por não concessão da mesma pelas forças armadas.Na confusão, um outro mendigo vizinho de João da Silva de porta de catedral, visando obter a entrada principal, que era mais lucrativa, apontou para os onze filhos do agora volatilizado infrator da lei, e a população, com sede de justiça, mutilou-os todos, jogando os seus restos para os cães de rua.Essa foi talvez uma das razões que levaram Zé da Silva à loucura e a viúva de João da Silva encontra-se hoje bem alimentada, bem vestida, bem cuidada, no reduto dos homens nobres e defensores implacáveis da moral na sociedade, o prostíbulo.
Daniel de Macedo Moura Fé

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